[Conto da Dinamarca] O Rei Dragão

Era uma vez um rei que tinha lindíssima esposa. Na noite do casamento deitaram-se, sem nada perceber, no leito matrimonial. Mas no dia seguinte viram escrito que não teriam filhos. O rei ficou tristíssimo. No entanto, muito mais pesarosa ficou a rainha, refletindo que nunca daria herdeiro ao país.

Um dia, caminhando pensativamente, chegou a um lugar afastado, onde se lhe deparou uma anciã que lhe perguntou a razão de tamanho desalento. A rainha, fitando-a, respondeu-lhe:

— Ah, minha boa mulher, de que vale contar-lhe o motivo da minha tristeza? A senhora não poderá ajudar-me!

— Quem sabe? retrucou a anciã, insistindo.

A rainha contou-lhe então que no dia seguinte à noite de núpcias tinham visto ela e o rei, escrito no leito, que jamais seriam pais. A anciã garantiu-lhe que poderia ajudá-la em tão doloroso transe. A rainha, ao por do sol, deveria pegar uma bacia e pô-la, de cabeça para baixo, na extremidade noroeste do jardim. De manhã, ao nascer do dia, a tiraria e encontraria duas rosas, uma vermelha, outra branca.

— Se pegar a rosa vermelha e a comer, terá um menino. Se comer a branca, terá uma menina. Cuidado, porém, muito cuidado, para não pegar as duas!

Regressando ao palácio, executou a rainha as recomendações da anciã. No dia seguinte, ao nascer do sol, foi para o jardim e, levantando a bacia, viu duas rosas, uma vermelha, outra branca. Ficou indecisa: se pegasse a vermelha, teria um menino, que poderia morrer numa guerra e, mais uma vez, se veria sem descendente. Por conseguinte, decidiu pegar a branca. Teria uma linda menina que ficaria em casa e, um dia, contrairia núpcias e passaria a ser rainha de outro país. Comeu a rosa branca. Gostou tanto, que devorou também a vermelha, pensando: “Assim terei gêmeos. Tanto melhor.”

Mulher jovem e bela segurando uma rosa vermelha

Por esse tempo, achava-se o rei em guerra. A rainha, sentindo-se grávida, comunicou-lhe a notícia, fazendo-o felicíssimo.

Porém quando finalmente chegou a hora, a rainha, ao invés de dar à luz um casal de gêmeos, deu à luz um dragão. Este, mal nasceu, esgueirou-se para baixo do leito. Após algum tempo, uma missiva do rei anunciou a sua volta para breve. Quando a carruagem que o trazia se deteve diante do castelo, a rainha correu-lhe ao encontro, e o dragão seguiu-a, pondo-se a dar saltos em volta do veículo e gritando:

— Benvindo, meu pai, benvindo!

— Hein? estranhou o rei. Sou seu pai?

— Claro! E se não quiser ser, destruirei você e o castelo!

O rei viu-se obrigado a concordar. No interior do castelo, a rainha confessou-lhe o que houvera entre ela e a anciã.

Dias mais tarde, reuniu-se o conselho para dar as boas-vindas ao rei e cumprimentá-lo pela brilhante vitória contra o inimigo. O dragão, surgindo de repente, disse:

— Meu pai, desejo casar-me!

— Mas meu filho, respondeu-lhe o rei, quem terá coragem de o aceitar para marido?

— Se não me arranjar uma mulher, jovem ou velha, destruirei você e o castelo!

O pobre pai escreveu aos soberanos de outros países, indagando da existência de uma jovem com ânimo para casar-se com o filho. Não tardou em aparecer uma belíssima princesa, a quem se afigurou esquisito não poder ver o noivo antes de entrar na sala em que se realizaria o casamento. Ali, pôs-se-lhe ao lado imediatamente o dragão. Findas as festividades, retiraram-se os dois para o aposento. Mal entraram, ele a devorou.

Chegou, entretanto, o aniversário do rei. Quando todos se achavam sentados à mesa, o dragão, aparecendo, gritou:

— Meu pai, desejo casar-me!

— Que mulher será capaz de o desposar, meu filho? retrucou o rei.

— Se não me arranjar mulher, devoro-o, e devoro também o castelo! bradou a fera.

Mais uma vez se dirigiu o pobre rei a todos os países, indagando se não havia uma jovem que quisesse contrair núpcias com o filho. Veio de muito longe formosa criatura. Também ela não viu o noivo antes da bênção nupcial. Só então o filho do rei se lhe pôs ao lado. Uma vez no aposento, matou-a imediatamente.

Algum tempo depois a rainha fez anos. Quando todos se achavam sentados à mesa, o dragão, surgindo inopinadamente, proferiu as palavras:

— Meu pai, desejo casar-me!

— Impossível arranjar-lhe outra mulher, retrucou o pai. Agora, os dois poderosos reis, cujas filhas lhe dei em casamento, pretendem guerrear-me. Que devo fazer?

— Deixe-os vir! Enquanto o senhor se der bem comigo, fique tranquilo, ainda que venham dez de uma só vez. Mas se não me arranjar mulher, jovem ou velha, grande ou pequena, rica ou pobre, destruirei você e o castelo!

Diante daquilo, teve o rei de concordar, não obstante a sua amargura.

Um velho pastor seu vivia numa casinha da floresta com uma filha. O rei, procurando-o, disse-lhe:

— Ouça, meu amigo, não quer que sua filha se case com meu filho?

— Não, respondeu o velho. Em primeiro lugar, porque só tenho esta para cuidar de mim. Depois, o príncipe, não poupando nem sequer formosas princesas, como irá poupar minha filha? Se a ceder cometerei um pecado.

O rei insistiu de tal maneira, no entanto, que o velho acabou concordando.

Voltando para casa, contou o que sucedera à filha que, muito triste, rumou pensativamente para a floresta. Ia caminhando, quando se lhe deparou uma anciã que para lá fora colher bagas e maçãs silvestres. Vestia blusa azul e saia vermelha.

— Por que está tão triste? perguntou-lhe.

— Tenho motivos, mas não adianta dizer-lhos, porque não poderá ajudar-me.

— Quem sabe? replicou a anciã. Conte-me tudo!

— Bem, preciso casar-me com o príncipe dragão, que já matou duas princesas, e sei por conseguinte que também a mim me há de matar.

— Se me der ouvidos, poderei ajudá-la, retrucou a anciã.

A pobre moça dispôs-se a ouvir-lhe o conselho.

— Depois da cerimônia, quando entrar no aposento, vista dez camisas. Se não as tiver, peça-as emprestadas. Além disso, exigirá um balde cheio de leite doce, outro de barrilha, e uma braçada de chicotes. Tudo isso deverá ser levado ao aposento. O dragão, ao entrar, dirá: “Formosa donzela, tire a camisa.” Você responderá: “Rei dragão, tire a pele.” Assim dirão um ao outro, até que você tenha tirado nove camisas e ele nove peles. A essa altura, o dragão já não terá peles, mas você ainda disporá de uma camisa. Aí, pegue-o, que ele nada mais será do que um monte de carne ensanguentada, mergulhe os chicotes na barrilha, e espanque-o até que ele caia em pedaços. Em seguida, banhe-o no leite doce, envolva-o nas nove camisas e pegue-o nos braços. Dormirá, então, algum tempo.

A moça agradeceu o bom conselho, embora tivesse muito medo, por se tratar de terrível aventura com tão medonho animal.

Chegado o dia do casamento, duas lindas mulheres viajando em esplêndida carruagem foram adornar a filha do pastor, e levaram-na ao castelo. Na sala, o dragão se lhe pôs ao lado. Os noivos receberam a bênção. Vinda a noite, deviam ir ao aposento. Mas a noiva exigiu um balde cheio de barrilha, um de leite doce e os chicotes. Todos os presentes riram dela, considerando aquilo pura superstição. No entanto, o rei ordenou lhe dessem tudo. Ela, antes de entrar no aposento fatal, vestiu as nove camisas, além da que já estava usando. O dragão, ao entrar, disse-lhe:

— Formosa donzela, tire a camisa!

Mas ela respondeu:

— Rei dragão, tire a pele.

Assim foi até que ela tivesse tirado nove camisas e ele nove peles.

Vendo-o então sobre o chão, quase imóvel, coberto de sangue, a pobre noiva reanimou-se. Pegou os chicotes, mergulhou-os na barrilha, e surrou valentemente o noivo. Em seguida, mergulhou-o no leite doce, envolveu-o nas nove camisas, deitou-se e tomou-o entre os braços. Adormeceu imediatamente. Ao acordar, achou-se nos braços de formoso príncipe.

O dia despontava. Ninguém ousava abrir a porta do aposento, certos de que veriam o mesmo que nas ocasiões anteriores. Finalmente, o rei, não se contendo, abriu. A filha do pastor exclamou:

— Entre. Tudo está bem!

O rei entrou, contentíssimo, seguido da rainha e dos outros. Nunca houve tantas congratulações em torno do leito de recém-casados. Marido e mulher levantaram-se logo para se vestir, porque o aposento no qual tinham passado a noite estava com um aspecto terrível. Realizou-se então nova festa de casamento, cheia de pompa e alegria. O rei e a rainha apreciavam sobremaneira a nora e não sabiam o que fazer por ela, pelo fato de os haver libertado do impressionante e cruel dragão.

Não tardou a filha do pastor a ficar grávida. Mais uma vez, no entanto, estourou a guerra, e tanto o velho monarca como no novo tiveram que partir. Quando chegou a hora, deu ela à luz dois belos meninos. Em tal ocasião achava-se na corte o cavalheiro Vermelho, que foi incumbido de entregar ao rei uma carta comunicando-lhe o nascimento dos dois principezinhos. Após percorrer uma parte do caminho, decidiu abrir a carta, para modificá-la, e anunciar que a rainha dera à luz dois cães. O rei, ao recebê-la, ficou muito triste, achando esquisito que tal houvesse sucedido; esperava um dragão ou bicho semelhante. Imediatamente respondeu à esposa que os dois entezinhos deviam permanecer vivos até o seu regresso, se é que poderiam viver. O cavalheiro Vermelho entregaria a missiva à rainha. Mas, o caminho, mais uma vez violou a correspondência, substituindo-a por outra na qual dizia que tanto a mãe quanto os filhos deviam ser queimados.

Ao receber a cruel ordem, a velha rainha se entristeceu, pois estimava deveras a jovem nora. Não tardou em chegar a notícia do pronto regresso do soberano. Elas, temerosas, não sabiam o que fazer; a velha rainha não tinha coragem de mandar matar as crianças. Assim, confiou-as a uma nutriz, acreditando que o rei mudaria de opinião uma vez que se visse no palácio. Dando um pouco de comida à jovem rainha, além de algum dinheiro, mandou-a para a floresta. A pobrezinha caminhou durante dois dias, profundamente abalada.

De repente, vendo na sua frente elevada montanha, escalou-a. Havia, no cume, três bancos. Sentou-se no do meio, e livrou os seios do leite acumulado, visto que sofria grandes dores. Subitamente, duas grandes aves se acomodaram, uma de cada lado. Eram um cisne e um grou. Ela deu-lhes o leite, e as duas aves se transformaram em belíssimos príncipes. A montanha virou formoso castelo com cortesãos, animais, ouro e prata, além dos demais pertences dos grandes palácios. Os dois príncipes enfeitiçados jamais teriam readquirido a forma humana não fora o leite de uma rainha que tivesse tido dois meninos. Ela acompanhou o príncipe cisne e o príncipe grou, e ambos queriam desposá-la em sinal de gratidão.

Mulher jovem com cisne

Entretanto, o rei dragão, chegando de volta da guerra, perguntou pela esposa.

— Ora! exclamou sua mãe. Julga-se ainda com direito de perguntar por sua mulher? Pois não se esqueceu da criatura que o libertou da miséria? E teve a coragem de ordenar, por escrito, que ela e as crianças fossem queimadas! Envergonhe-se!

— Vocês me escreveram, retrucou o rei, que ela havia dado à luz dois cães e eu me limitei a responder que estes deveriam continuar vivos até o meu regresso.

Discutiram durante algum tempo. Por fim, perceberam que o cavalheiro Vermelho os traíra. Prenderam-no e ele foi obrigado a confessar. Fechado num barril, cheio de pregos, levaram-no por sobre montanhas e vales.

O rei chorava a perda da esposa e dos filhos, que sabia agora serem dois lindos meninos. Sua mãe, para o consolar, disse-lhe:

— Acalme-se! As crianças estão bem, porque foram entregues a nutrizes dedicadas. Mas quanto a sua esposa, não sei como vai. Dei-lhe comida e dinheiro, e mandei-a para a floresta. Desde então, nada mais soubemos na pobre criatura.

O rei ordenou que as crianças lhe fossem devolvidas. Em seguida, pegando alimentos e dinheiro, rumou para a floresta a fim de procurá-la. Caminhou dois ou três dias, mas não conseguiu localizá-la. Finalmente, avisou o castelo da floresta. Vendo gente, perguntou se não tinham visto uma senhora estranha na floresta. Responderam-lhe que não. Quis então entrar no castelo para travar conhecimento com seus moradores. E foi o que fez. Naquele momento, viu a esposa e ela também o viu. No entanto, amedrontada, pensando que ele a fora procurar para queimá-la, fugiu.

Os dois príncipes, aparecendo conversaram com o rei dragão. Tornaram-se amigos e convidaram-no para o almoço. Ele, referindo-se à esposa, perguntou-lhes onde a tinham encontrado. Ambos lhe confessaram que a amavam bastante, por lhes haver libertado do feitiço. O rei indagou de que feitiço se tratava, e eles lhe contaram a história toda. Confessou então por sua vez que a amava, e propôs um acordo: salgariam a comida da rainha, e aquele que ela convidasse a beber à sua saúde a levaria por esposa. Os dois príncipes cederam, certos de que ela jamais convidaria o estranho.

Sentados à mesa para o almoço, disse ela:

— Parece-me salgada esta comida.
Perto de mim o cisne rei se encontra;
quanto ao rei grou, me trata muito bem,
mas quem bebe comigo é o rei dragão.

Imediatamente, pegando a taça de prata, bebeu ele à saúde dela, enquanto os outros bebiam à sua própria saúde. O rei dragão depois contou a ambos como ela o libertara antes de libertar a eles. Cabia-lhe, portanto, muito mais direito. Os dois retrucaram que ele podia ter dito tudo antes.

O rei dragão e sua esposa rumaram para o palácio, aonde entretanto haviam também chegado os filhos. O rei cisne ficou com o castelo da floresta, e desposou uma princesa de outro reino. O rei grou partiu para outro país e lá contraiu, por sua vez, felizes núpcias. Todos tinham, portanto, com o que ser venturosos. O rei dragão e sua esposa eram estimados pelos súditos, e tiveram muitos filhos. Quando os visitei me ofereceram um pedaço de pão de estanho numa peneira.

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Extraído da Enciclopédia Universal da Fábula, vol. XVIII.
Imagens: 1. George Dunlop Leslie, Tempo das Rosas. 2. Ravi Varma, A Princesa Damayanthi falando com o cisne real.

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